sexta-feira, 3 de agosto de 2018

CÂMERAS DE SEGURANÇA E A VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA INTIMIDADE E DA VIDA PRIVADA

As câmeras de vigilância, também conhecidas como câmeras de segurança, atualmente, estão presentes em praticamente todos os locais, sejam públicos ou privados.

Nas grandes metrópoles, as câmeras de vigilância são tidas como instrumentos essenciais de segurança. Assim o é que, quando do acontecimento de algum crime, o primeiro questionamento que se faz é sobre a existência de tais câmeras.
Graças às câmeras de vigilância tornou-se possível flagrar verdadeiras atrocidades cometidas por babás contra bebês e contra idosos, por seus acompanhantes viabilizando assim, a consequente punição do agressor.
Mas, não é apenas na esfera criminal que as câmeras de segurança tem seu destaque. Na atualidade, os pais podem acompanhar o desenvolvimento de seus filhos na escola, em tempo real, através da internet. Pelo Google Earth, pode-se viajar para qualquer lugar da Terra e ver imagens de satélite, mapas, terrenos e construções em 3D.
Inobstante a gama de benefícios que estas câmeras propiciam, diante de tamanha exposição, vem à tona questionamentos acerca do respeito ao direito constitucional à intimidade e à vida privada.
É cediço que o direito à intimidade suscita inúmeras dificuldades, principalmente quando se pretende precisar a extensão do seu conteúdo, pois, dado o seu caráter subjetivo, varia de pessoa para pessoa, e ainda, considerando-se os valores sociais são mutáveis no tempo e no espaço.
No mesmo sentido, ressalta-se a difícil tarefa de equalizar interesses juridicamente protegidos, mas conflitantes em dada situação, tal como, a grande questão de se preservar a intimidade ou a segurança pública?
Diante desse cenário, dado o interesse em estudar o direito à intimidade e à vida privada, sob o ponto de vista do direito da personalidade, bem como em face das questões expostas, no presente trabalho far-se-á uma análise sobre os aspectos que envolvem o direito à intimidade e à vida privada em um momento em que vivemos um verdadeiro “reality show” a céu aberto.
2 Breve síntese da positivação do direito à intimidade e à vida privada
O direito à intimidade e à vida privada são partes integrantes do princípio da dignidade da pessoa humana, como uma garantia fundamental, consagrada no artigo 5º, X, CF, nos seguintes termos:
“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, `a liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…)
X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
Ocorre que nem sempre foi assim. A preservação da intimidade e da vida privada são princípios relativamente novos, sendo que a primeira manifestação efetiva do direito à intimidade deu-se nos Estados Unidos, em 15/12/1890, com a publicação de Warren e Brandeis, dois juristas norte-americanos que iniciaram a construção jurídica sobre o direito “de ser deixado só”, em artigo da Harvard Law Review, sob o título “The Right to Privacy“.[1]
A partir da publicação do artigo em comento, lançou-se um debate irreversível sobre a questão da necessidade de positivação de um direito fundamental à intimidade e à vida privada.
Assim é que, em 1905, na Alemanha, surge a primeira menção expressa em Doutrina a um direito à intimidade e à vida privada. Trata-se de um trabalho de Giesker, intitulado Das Recht des Privaten na der eigenem Geheimnissphare[2].
Numa dimensão mais ampla, o direito à intimidade e à vida privada surgiu em 02/05/1948 com a Declaração Americana dos Direitos do Homem, que previu em seu artigo 5º:
 “Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra ataques abusivos a sua honra, a sua reputação e a sua vida privada e familiar”.
Adiante, com aprovação da Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) em 10/12/1972, vislumbrou-se a positivação em âmbito internacional do direito à intimidade e à vida privada, no artigo 12, que assim reza:
“Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito à proteção da lei”.
O direito fundamental à intimidade e à vida privada foi então, consolidando-se, passando a ser objeto de discussão em todo o mundo, seja em âmbito doutrinário, jurisprudencial, debates ou conferências, como ensina José Adercio Leite Sampaio, para quem sua menção “passa a aparecer em diversos outros documentos e ocupa a pauta de inúmeras conferências, seminários, encontros e estudos de âmbito supranacional”[3].
No Brasil, o primeiro instrumento legislativo a tutelar expressamente o direito à intimidade e à vida privada, foi a Lei de Imprensa (Lei n º. 5250/67), no seu artigo 49:
Aquele que no exercício da liberdade de manifestação de pensamento e de informação, com dolo ou culpa, viola direito, ou causa prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar:
(…)
§ 1º Nos casos de calúnia e difamação, a prova da verdade, desde que admissível na forma dos arts. 20 e 21, excepcionada no prazo da contestação, excluirá a responsabilidade civil, salvo se o fato imputado, embora verdadeiro, diz respeito à vida privada do ofendido e a divulgação não foi motivada em razão de interesse público.
Mas foi com a Magna Carta de 1988 que o direito à intimidade e à vida privada foi consolidado como direito fundamental, inserto no capítulo “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”. A proteção foi consagrada ainda, na cláusula geral do artigo 21 do Código Civil brasileiro:
Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.
3 Conceituação e diferenciação entre intimidade e vida privada
As palavras Intimidade e Privado são encontrados como sinônimos no Dicionário[4]: “Intimidade: s.f. Caráter do que é íntimo, secreto. / Amizade íntima, relações íntimas: viver na intimidade de alguém. // Na intimidade, entre íntimos; no recesso do seu lar; Privado: adj. Particular, que não é função pública: empresa privada. / Que é reservado para certas pessoas: sessão privada. / Que diz respeito particularmente ao indivíduo, à sua intimidade familiar: vida privada. / (…).”
Em que pese o fato dos termos acima referidos serem tidos como sinônimos no Dicionário, grande parte da doutrina entende existir distinção entre intimidade e vida privada. Neste sentido, o autor Manoel Gonçalves Ferreira Filho ressalta que:
 “(…) os conceitos constitucionais de intimidade e vida privada apresentam grande interligação, podendo porém ser diferenciados por meio da menor amplitude do primeiro que se encontra no âmbito de incidência do segundo. Assim, o conceito de intimidade relaciona-se às relações subjetivas e de trato íntimo da pessoa humana, suas relações familiares e de amizade, enquanto o conceito de vida privada envolve todos os relacionamentos da pessoa, inclusive os objetivos, tais como relações comerciais, de trabalho, de estudo, etc.”[5]
Nessa senda, constata-se que a diferença reside no fato da intimidade pertencer a um círculo mais restrito do que o direito à vida privada. Acerca desta questão, discorre Tércio Sampaio Ferraz:
 “A intimidade é o âmbito do exclusivo que alguém reserva para si, sem nenhuma repercussão social, nem mesmo ao alcance da sua vida privada que, por mais isolada que seja, é sempre um viver entre os outros (na família, no trabalho, no lazer comum). Não há um conceito absoluto de intimidade, embora se possa dizer que o seu atributo básico é o estar só, não exclui o segredo e a autonomia. Nestes termos, é possível identificá-la: o diário íntimo, o segredo sob juramento, as próprias convicções, as situações indevassáveis de pudor pessoal, o segredo íntimo cuja mínima publicidade constrange.”[6]
O direito à intimidade e à vida privada apresenta-se, assim, como o direito de que as pessoas gozam de defender suas vidas de qualquer invasão por terceiros, desde a esfera mais exclusiva (intimidade), ao âmbito de fatos e acontecimentos compartilhados com pessoas íntimas (vida privada).
Para o Professor José Afonso da Silva, a intimidade integra a esfera íntima da pessoa, os seus pensamentos, desejos e convicções, enquanto a vida privada significa o direito do indivíduo de ser e viver a própria vida, relacionando-se com quem bem entender. Relata que a Carta Magna, ao proteger a vida privada, refere-se à vida interior, “como conjunto do modo de ser e viver, como direito de o indivíduo viver a própria vida” e não à vida exterior, que envolve a pessoa nas relações sociais e nas atividades públicas.[7]
Conclui-se, pois, que vida privada distingue-se da vida íntima, ou seja, aquilo que a pessoa pensa, sente e deseja refere-se à sua intimidade; já os seus hábitos, modo de viver, de se comportar, sua opção sexual, seus amigos, seus relacionamentos profissionais e, igualmente, aquilo que o sujeito possui, têm pertinência com a sua vida privada.
4 O direito à intimidade e à vida privada e as câmeras de segurança
O monitoramento com câmeras de vídeo tem se tornado uma prática cada vez mais comum em ambientes públicos, corporativos e residenciais, sempre com foco na segurança. A vigilância com câmeras de vídeo é um dos meios mais eficientes para prevenção e controle da segurança patrimonial e pessoal, posto que possibilita ver e gravar imagens de locais vulneráveis ou de risco.
Jorge Lordello[8], Especialista em Segurança Pública e Privada, afirma com bastante propriedade, que investir em segurança, atualmente, não é nenhum tipo de luxo, mas uma necessidade. Para ele, as câmeras de segurança apresentam diversos benefícios, dentre eles:
a) Fator psicológico de dissuasão, pois o marginal sabe que está sendo vigiado e suas imagens armazenadas;
b) Inibe a ação de invasores, depredadores, pichadores e pessoas mal-intencionadas;
c) Facilita o trabalho de pronta resposta (polícia e vigilância particular) fornecendo pormenores do crime que está ocorrendo;
d) Integração com sistemas de alarmes;
e) Acesso às imagens pela Internet.
De fato, os benefícios são evidentes, principalmente, quando à divulgação das imagens que então, auxiliam na captura de um criminoso, a exemplo do que aconteceu, recentemente, no Estado do Rio de Janeiro, no caso em que um criminoso, após render os passageiros de um micro ônibus, as conhecidas “Vans”, violentou sexualmente uma das passageiras.
A câmera de segurança instalada na Van filmou com precisão e perfeição a face do criminoso, cuja imagem foi divulgada em rede nacional, culminando em uma denúncia anônima e a efetiva localização e prisão do meliante. Sem dúvida, um ponto positivo em favor das câmeras de segurança e divulgação das imagens.
Por outro lado, o que dizer de casos nos quais imagens capturadas por essas câmeras de segurança são divulgadas nos meios de comunicação, sem qualquer autorização das pessoas filmadas, seguidas por uma notícia deturpada, colocando as pessoas em situação constrangedora?
A título de exemplo, um caso real vivenciado pela autora deste. Em agosto de 1999, cursando o segundo ano da faculdade de Direito, tendo aceito o convite dos colegas da mesma turma, fomos a uma churrascaria participar do famoso “pendura”[9].  Comemos, divertimo-nos e na hora de pagar a conta, a leitura de uma cartinha, informando que a conta não seria paga, pois seria “pendurada”.
O dono do restaurante, nada satisfeito com tal situação, trancou as portas e chamou a polícia. Vários camburões chegaram e ficaram de prontidão. Os policiais armados com metralhadoras e usando máscaras de lã mostrando apenas os olhos (a churrascaria era toda de vidro) amedrontavam os estudantes. Um total desespero! Com muito medo, sem concordar com tudo aquilo, não consegui levar adiante a brincadeira dos meus colegas e em prantos, paguei a minha conta e saí da churrascaria.
No dia seguinte, no telejornal da Rede Bandeirantes, sob a apresentação do Sr. José Luiz Datena, lá estava a minha imagem e o ilustríssimo apresentador dizendo algo como: “esses filhinhos de papai que não trabalham, não fazem nada, querendo sair sem pagar a conta! Se um pai de família faz uma coisa dessas vai preso, mas esses “playboyzinhos” que não sabem o que é passar fome, ficam com essa palhaçada e ainda tem a cara de pau de sair sem pagar(…)”. Eu não era uma “filhinha de papai”, sempre trabalhei para pagar a minha faculdade e não estava saindo do restaurante sem pagar a conta!
Os comentários totalmente deturpados do apresentador, que não relatavam a realidade, juntamente com a minha imagem no plano de fundo do noticiário, deixaram-me em situação extremamente constrangedora, principalmente, perante meus familiares que se indignaram com a minha suposta postura: sair do restaurante sem pagar a conta!
Nesse caso, sequer refiro-me ao meu direito em ter preservada a minha imagem, direito de personalidade, consagrado na Magna Carta de 1998, nos incisos X e XVIII, mas ao meu direito à privacidade, em poder ir a um restaurante com meus amigos, sem que no dia seguinte, o país inteiro soubesse onde eu estava, com quem eu estava e o que eu estava fazendo!
Fato é que com a proliferação das câmeras de vigilância o que tem se tornado “artigo de luxo” é a nossa privacidade. A realidade é que as lentes indiscretas não apontam só para criminosos e celebridades que chamam para si os holofotes. Estão em toda parte. Em elevadores, portarias de prédios, bancos, ruas, supermercados, tal como se vivêssemos num imenso reality show, no qual a intimidade dos cidadãos fica 24 horas acessível a milhões de pessoas.
Ainda assim, as pessoas parecem dispostas a perder sua privacidade em nome da segurança. Casos como o que ocorreu em Sobral, no Ceará, onde um juiz matou com um tiro na nuca o segurança de um supermercado, incentivam a sociedade a aprovar essa invasão. Se não fosse a câmera que registrou toda a cena, seria a palavra de um caixa de supermercado contra a de um juiz.[10]
5 Conclusão
O direito à intimidade e à vida privada é considerado no Direito Civil brasileiro como direitos da personalidade e, segundo a nossa Constituição Federal de 1988, art. 5º, inciso X, um direito fundamental e inviolável.
A intimidade e a vida privada são direitos que se interpenetram, guardando entre si grande vinculação. Contudo, mesmo que usualmente os conceitos de ambos confundam-se, eles são distintos, guardando aspectos em que é possível uma diferenciação, destacando-se o fato de que a intimidade pertenceria a um círculo mais restrito do que o direito à vida privada.
Marcelo Cardoso Pereira[11] esclarece que o direito à intimidade inclui a esfera de proteção ao que há de mais íntimo na pessoa, ou seja, os desejos, pensamentos, ideias e emoções. Aquilo que pertence a um “território” exclusivo, em que a não publicidade é essencial para o desenvolvimento pleno de tais faculdades. No que se refere “à vida privada seria, em uma primeira aproximação, tudo o que não pertença ao âmbito da intimidade, mas que, por sua vez, não transparece à esfera pública”.
O fato é que nossos erros, nossas imperfeições e até mesmo nossas virtudes não devem estar obrigatoriamente expostas ao domínio público, pois, interesses variados podem forçar-nos a ocultar determinados fatos do conhecimento de outras pessoas. Por sua vez, o desenvolvimento tecnológico, as câmeras de segurança, estão propiciando uma verdadeira espionagem à privacidade da pessoa.
Contudo, de forma geral, ciente de todas as questões envolvidas, principalmente no que tange à invasão de sua privacidade, a população tem se mostrado favorável à instalação de câmeras de vigilância, pois entendem que elas ajudam a combater a violência, guardando assim, um bem tão caro neste Século, qual seja, a segurança.
Ao que tudo indica, em um futuro não muito distante, a famosa plaquinha “SORRIA, VOCÊ ESTÁ SENDO FILMADO”, deixará de existir, pois a vigilância será tão comum que, estranho mesmo, será passarmos ou estarmos em algum local em que não existam câmeras de segurança.

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