Em 28 de agosto de 1963, durante a Marcha sobre Washington, o ativista dos direitos humanos Martin Luther King, nos degraus do Lincoln Memorial, disse que tinha um sonho: que seus quatro filhos pudessem um dia viver numa nação onde não fossem julgados pelo cor da pele, mas sim pelo seu caráter.
O discurso, considerado um dos mais belos libelos contra o racismo da história, contagiou os mais de 250 mil presentes no ato, que chegaram de todo o país para pedir liberdade e o fim da segregação racial nos Estados Unidos.
A luta dos negros ganhava volume, forçando o governo federal a aprovar, em 1964, a Lei dos Direitos Civis, que colocou fim às normas que legalizavam a segregação racial em diversos estados americanos (durante muito tempo, negros e brancos estudavam em instituições diferentes, assim como havia separação no transporte e outros serviços públicos). No ano seguinte, o presidente Lyndon B. Johnson sancionou a Lei dos Direitos do Voto, que terminou com práticas eleitorais discriminatórias, como por exemplo os testes de analfabetismo para negros.
As palavras do ativista, no entanto, não ficaram estacionadas nos degraus do Lincoln Memorial. Elas ecoam até hoje.
“O legado de Luther King transcende a questão racial. Óbvio, a influência dele no movimento negro se deve a sua pauta, que era a questão racial. Era uma liderança na luta por direitos renegados aos negros. Porém, seu legado é mais abrangente. A luta pela dignidade da vida humana é uma causa que não é exclusiva do movimento negro, mas de todo humanista. Trata-se de respeito, de dignidade, de ser aceito. Esse discurso cai como uma luva para a militância de qualquer causa, seja ela a negra, a feminista, a LGBT. Não é fácil ter sua humanidade contestada e roubada diariamente, como esses grupos tem, todo santo dia”, afirma o historiador e militante Flávio Braga, professor das redes municipal e estadual de ensino do Rio de Janeiro.
Nascido em 1929 no sul dos Estados Unidos, em Atlanta (Georgia), Martin Luther King foi um dos principais líderes do Movimentos pelos Direitos Civis. Estudou teologia e, seguindo o exemplo do seu pai, entrou para a igreja. Em 1954, tornou-se pastor batista em Montgomery, no Alabama, onde seu nome começou a virar lenda.
Em 1° de dezembro de 1955, Rosa Parks entrou em um ônibus no centro de Montgomery, e sentou-se num assento reservado aos negros. Conforme o veículo enchia, brancos ficaram em pé. Como determinava a lei, o motorista solicitou que Parks cedesse seu lugar. Ela se recusou e foi presa. O caso gerou revolta na comunidade negra, e Luther King ajudou a organizar um boicote ao transporte público da cidade.
O pastor começava a ganhar projeção. Sua atuação desaguou em mais protestos e manifestações, como os que ocorreram nas ruas de Birmingham, também no Alabama. Guiados por Luther King, milhares pediam direitos iguais. Mesmo adotando a política de não violência, as passeatas foram duramente reprimidas.
Em 1964, a luta do reverendo culminou na entrega do Prêmio Nobel da Paz. Entre 1965 e 1968, o ativista concentrou esforços na redução da desigualdade econômica, liderando uma campanha para combater a pobreza. Além disso, atacava veementemente a Guerra do Vietnã. Foi nessa época, contudo, que o antes incontestável líder passou ser criticado por ser excessivamente pacífico.
No dia 4 de abril de 1968, Luther King foi assassinado com um tiro num hotel da cidade de Memphis (Tennesse). Nesses 50 anos que se passaram desde sua morte, os Estados Unidos vivenciaram muitas mudanças.
Em 1991, nas ruas de Los Angeles, o taxista negro Rodney King foi brutalmente espancando pela polícia, fato que provocou violentos protestos. Mais recentemente, a tensão racial emergiu novamente em localidades como Fergunson (Missouri), Charlotte (Carolina do Norte) e Sacramento (Califórnia), quando homens negros desarmados foram mortos pela polícia, o que gerou uma onda de manifestações. Em 2013, a absolvição do vigia branco George Zimmerman, acusado de matar o jovem negro Trayvon Martin em Sanford (Flórida), causou protestos em todo país.
“O povo negro continua a ser traído nesse país, que reivindica liberdade para todos, mas que permite a impunidade para assassinos da população negra”, diz uma das fundadoras do movimento Black Lives Matter, Patrisse Khan-Cullors.
Passados 50 anos da morte de Luther King, os quatro filhos do ativista, e milhões de homens e mulheres negras pelo mundo, continuam sendo julgados pela cor da pele. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos viram Barack Obama ser eleito presidente - o primeiro negro a chegar à Casa Branca.
“Infelizmente, o sonho dele ainda não se concretizou. A desigualdade racial se faz presente na sociedade brasileira e na americana. Mas não podemos negar que a questão racial vem ganhando cada vez mais projeção. Mesmo que o sonho de Luther King não tenha sido realizado - e nem se realizará a curto ou médio prazo, ele plantou uma semente: a de que temos que buscar saídas para que todos tenham as mesmas oportunidades e, mais do que isso, que todo ser humano possa ser tratado com dignidade”, diz Flavio.
Heróis de pele preta
A influência de Martin Luther King ultrapassou fronteiras. O líder pacifista é reverenciado em vários lugares do mundo. No Brasil, ele também é visto como um exemplo, mas existem no país muitos heróis e heroínas que lutaram pelos direitos dos negros.
Entre os mais conhecidos está Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares, um dos pioneiros na resistência à escravidão. Sua importância foi reconhecida com a criação do Dia Nacional da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, data da morte do líder quilombola em 1695.
Mas existem muitos outros, como os irmãos Rebouças, André e Antônio, engenheiros e abolicionistas; Abdias do Nascimento, escritor e um dos maiores defensores da cultura e igualdade para as populações afrodescendentes no Brasil; e Tia Ciata, cozinheira, mãe-de-santo e uma das pioneiras do samba.
“Os heróis negros brasileiros existem, mas não tem a devida projeção. Nosso ensino é eurocêntrico e ignora essas figuras. Precisamos saber mais sobre esse legado tão rico e parar de reduzir a cultura afro a algo exótico”, defende o historiador e professor Flavio Braga.
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